Vila Nova de Ourém, 25 de Junho de 1950.
Quase meio século de magistério
O Senhor Professor António de Oliveira recebeu, no passado dia 10 em Lisboa na Sala Portugal da Sociedade Geografia, em sessão pública, um justo prémio pelo seu longo e proficiente labor ao serviço da causa sagrada da instrução. Depois de 45 anos de magistério ininterrupto, na árdua tarefa de iluminar cérebros pequeninos de moldar almas para a grande peleja da vida, o bom mestre teve alfim merecido galardão do seu saber, operosidade e dedicação profissional. Das mãos do mais alto Magistrado da Nação, recebeu as insígnias que são o testemunho do muito apreço por essas qualidades.
Brilha-lhe, pois, desde esse dia, no peito largo e generoso de trabalhador esforçado, uma condecoração de alto valor – a Veneranda Ordem da Instrução Pública – em cujo grau de cavaleiro foi solenemente investido, a par de outros colegas, que, em reduzido número, rigorosamente escolhido, ali foram também homenageados, uma solenidade de rara grandeza e emoção.
No ano já longínquo de 1899, há cinquenta e um ano pois, concluído brilhantemente o curso na Escola Normal de Lisboa, o então jovem pedagogo, chegou a Vila Nova de Ourém. O velho edifício Conde Ferreira ouviu-lhe as primeiras lições e, à parte pequeno interregno durante o qual leccionou numa velha casa portuguesa, hoje remoçada, ali para os lados do Regato, toda a sua vida escolar decorreu naquele no vetusto edifício, donde só saiu depois de aposentado.
Durante quase meio século por ali passaram, sob a sua proficiente direcção pedagógica, centenas e centenas de rapazes que depois foram ocupar, na vida, funções de médicos, advogados, farmacêuticos, professores, isto de entre os que seguiram estudos superiores ou médios, pois outros há que são hoje também figuras de relevo no comércio, na indústria, na agricultura. Do seu primeiro curso nesta escola fizeram parte, por exemplo, o hoje desembargador da Relação de Lisboa, Doutor Sousa Pinto e o Engenheiro Director da Circunscrição Florestal de Coimbra, Augusto Barjona de Freitas.
Se Ourém não viu nascer o professor Oliveira, pois essa honra cabe, a Sesimbra, assistiu ele ao desabrochar para a vida de quase todos os que hoje formam a população da Vila e de muitos outros dispersos por longes terras.
Por isso ouriense se considera e como tal o reputamos, tanto mais que do coração sabemos de há muito que o é.
Não só como professor, Ourém lhe deve serviços inestimáveis; também corno pessoa de escol, para o elenco dirigente de órgãos administrativos locais, a sua colaboração tem sido várias vezes solicitada e se fez sentir, marcando sempre criteriosamente e com dignidade o seu lugar,
De uma austeridade doseada com bondade mas amigo dos seus alunos, interessava-se por todas as particularidades da sua vida e sobretudo pelos seus triunfos e reveses, que depois os acompanhavam pela existência fora, exultando com aqueles e compungindo-se com estes. Criou-se assim justamente uma auréola de amizade e de prestígio que as sucessivas gerações que ensinou e educou fizeram adensar à sua volta.
Nas aulas fazia-se respeitar e estimar ao mesmo tempo. Sabia ministrar disciplina, sem amordaçar as naturais explosões do sangue moço. Para tudo havia tempo – dizia.
Nenhum dos seus antigos alunos recorda, hoje com azedume a palmatoada da praxe dada sempre com propriedade, nem o cachação brando e amigo com que afagava algum mais endiabrado e fugidio que passava ao alcance da mão. Todos relembram com saudades e gratidão as suas lições de mestre competente e dedicado, a paternal solicitude e bonomia com que, os atendia. Se algum, mais mimoso, ensaiava berreiro ao contacto da palmatória justiceira, logo o animava dizendo: “Não te apoquentes rapaz, tens a pele muito fina, por isso repassou tão depressa”. E o miúdo acabava por sorrir.
Se o barulho ia a mais pelas bancadas, então batia duas, reguadas fortes na beira da secretária e impunha, irónico; “Só quero que me deixem ouvir a pêndula do relógio”. E se, esquecida, pouco depois, a intimativa o ruído voltava a imperar na sala, insistia, sorrindo: “Então vocês não me deixam ouvir a pêndula do relógio? É só por cinco minutos…” E o silêncio restabelecia-se finalmente.
O seu espírito de justiça ressalta no seguinte episódio: Um dia, depois de ter dito ao seu auditório infantil que queria silêncio, que “não desejava ouvir outra coisa que não fosse a pêndula do relógio”, sentou-se à secretária e embrenhou-se em qualquer serviço que reclamava a sua melhor atenção. O silêncio fez-se, de facto. O tic tac sincrónico do velho relógio pontificava na vasta sala. O mestre sentado, à secretária, absorvera-se no trabalho. A rapaziada estudava, ou fingia. Nisto, um deles, menino bem comportado e por sinal de boas famílias, levanta-se e apontando para um condiscípulo que próximo cochichava com outro, acusou: “Senhor Oliveira, Fulano está a falar.” O bom professor, despertado assim bruscamente do seu labor, fitou o repreensivo e pronto sentenciou: “Pois quem eu ouvi toste tu e não ele. Anda cá.” E aplicou ao acusador o castigo que havia cominado para a eventualidade da infracção.
Tudo isto nos veio à memória ao termos conhecimento da homenagem que o Senhor Professor Oliveira recebera do Governo da Nação. Recordando alguns passos da sua vida de mestre exemplar e de homem de bem, associamo-nos do mais íntimo, embora mal-alinhavadamente, a tão justa consagração. E connosco está – sabemo-lo – toda a falange imensa dos que dele receberam proveitosos ensinamentos. Connosco está, afinal... Vila Nova de Ourém.
No “Noticias de Ourém” a 25/06/1950
Brilha-lhe, pois, desde esse dia, no peito largo e generoso de trabalhador esforçado, uma condecoração de alto valor – a Veneranda Ordem da Instrução Pública – em cujo grau de cavaleiro foi solenemente investido, a par de outros colegas, que, em reduzido número, rigorosamente escolhido, ali foram também homenageados, uma solenidade de rara grandeza e emoção.
No ano já longínquo de 1899, há cinquenta e um ano pois, concluído brilhantemente o curso na Escola Normal de Lisboa, o então jovem pedagogo, chegou a Vila Nova de Ourém. O velho edifício Conde Ferreira ouviu-lhe as primeiras lições e, à parte pequeno interregno durante o qual leccionou numa velha casa portuguesa, hoje remoçada, ali para os lados do Regato, toda a sua vida escolar decorreu naquele no vetusto edifício, donde só saiu depois de aposentado.
Durante quase meio século por ali passaram, sob a sua proficiente direcção pedagógica, centenas e centenas de rapazes que depois foram ocupar, na vida, funções de médicos, advogados, farmacêuticos, professores, isto de entre os que seguiram estudos superiores ou médios, pois outros há que são hoje também figuras de relevo no comércio, na indústria, na agricultura. Do seu primeiro curso nesta escola fizeram parte, por exemplo, o hoje desembargador da Relação de Lisboa, Doutor Sousa Pinto e o Engenheiro Director da Circunscrição Florestal de Coimbra, Augusto Barjona de Freitas.
Se Ourém não viu nascer o professor Oliveira, pois essa honra cabe, a Sesimbra, assistiu ele ao desabrochar para a vida de quase todos os que hoje formam a população da Vila e de muitos outros dispersos por longes terras.
Por isso ouriense se considera e como tal o reputamos, tanto mais que do coração sabemos de há muito que o é.
Não só como professor, Ourém lhe deve serviços inestimáveis; também corno pessoa de escol, para o elenco dirigente de órgãos administrativos locais, a sua colaboração tem sido várias vezes solicitada e se fez sentir, marcando sempre criteriosamente e com dignidade o seu lugar,
De uma austeridade doseada com bondade mas amigo dos seus alunos, interessava-se por todas as particularidades da sua vida e sobretudo pelos seus triunfos e reveses, que depois os acompanhavam pela existência fora, exultando com aqueles e compungindo-se com estes. Criou-se assim justamente uma auréola de amizade e de prestígio que as sucessivas gerações que ensinou e educou fizeram adensar à sua volta.
Nas aulas fazia-se respeitar e estimar ao mesmo tempo. Sabia ministrar disciplina, sem amordaçar as naturais explosões do sangue moço. Para tudo havia tempo – dizia.
Nenhum dos seus antigos alunos recorda, hoje com azedume a palmatoada da praxe dada sempre com propriedade, nem o cachação brando e amigo com que afagava algum mais endiabrado e fugidio que passava ao alcance da mão. Todos relembram com saudades e gratidão as suas lições de mestre competente e dedicado, a paternal solicitude e bonomia com que, os atendia. Se algum, mais mimoso, ensaiava berreiro ao contacto da palmatória justiceira, logo o animava dizendo: “Não te apoquentes rapaz, tens a pele muito fina, por isso repassou tão depressa”. E o miúdo acabava por sorrir.
Se o barulho ia a mais pelas bancadas, então batia duas, reguadas fortes na beira da secretária e impunha, irónico; “Só quero que me deixem ouvir a pêndula do relógio”. E se, esquecida, pouco depois, a intimativa o ruído voltava a imperar na sala, insistia, sorrindo: “Então vocês não me deixam ouvir a pêndula do relógio? É só por cinco minutos…” E o silêncio restabelecia-se finalmente.
O seu espírito de justiça ressalta no seguinte episódio: Um dia, depois de ter dito ao seu auditório infantil que queria silêncio, que “não desejava ouvir outra coisa que não fosse a pêndula do relógio”, sentou-se à secretária e embrenhou-se em qualquer serviço que reclamava a sua melhor atenção. O silêncio fez-se, de facto. O tic tac sincrónico do velho relógio pontificava na vasta sala. O mestre sentado, à secretária, absorvera-se no trabalho. A rapaziada estudava, ou fingia. Nisto, um deles, menino bem comportado e por sinal de boas famílias, levanta-se e apontando para um condiscípulo que próximo cochichava com outro, acusou: “Senhor Oliveira, Fulano está a falar.” O bom professor, despertado assim bruscamente do seu labor, fitou o repreensivo e pronto sentenciou: “Pois quem eu ouvi toste tu e não ele. Anda cá.” E aplicou ao acusador o castigo que havia cominado para a eventualidade da infracção.
Tudo isto nos veio à memória ao termos conhecimento da homenagem que o Senhor Professor Oliveira recebera do Governo da Nação. Recordando alguns passos da sua vida de mestre exemplar e de homem de bem, associamo-nos do mais íntimo, embora mal-alinhavadamente, a tão justa consagração. E connosco está – sabemo-lo – toda a falange imensa dos que dele receberam proveitosos ensinamentos. Connosco está, afinal... Vila Nova de Ourém.
No “Noticias de Ourém” a 25/06/1950
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