2005/09/15

Carta aberta a José Galamba

Querido Amigo,

Você sabe bem quanto eu gosto do nosso jornal, como ele me está no sangue. E “sei” que, já perguntou a si próprio – “Teria o Andrade esquecido, nas águas verdes do Atlântico, as páginas velhinhas do “Noticias de Ourém?”

É muito legítima tal dúvida, tão longa tem sido a minha ausência. Digo-lhe mais: se alguém tem o direito de fazer semelhante pergunta, o meu querido amigo possui-o mais que ninguém, pois eu bem tenho constatado a sua insistência na luta pelos ideais ourienses – ou melhor, por uma Ourém ideal – a sua presença constante, inesgotável nas colunas do “Notícias”.

Mas o meu amigo, intimamente, tem a certeza de que esse jornal pequenino, (que poderia ser grande se algumas pessoas quisessem), esse amor – da minha adolescência, será sempre o “meu” jornal. Como eu sei, aliás, que ele é... – o “seu” jornal.

Quando cheguei aos Açores, maravilhado ainda pela beleza edénica das paisagens da Madeira, peguei na caneta e escrevi um longo artigo, para o “Notícias de Ourém”, tentando narrar os encantos da ilha, que visitei durante um dia inteiro. Não tive oportunidade de enviá-lo imediatamente e... perdi-o.

Sabia-o de cor quase na íntegra, mas como nunca gosto de nada do que escrevo, era absolutamente incapaz de rabiscá-lo de novo. Admito que devia ser tão mau, que o destino não quis que fosse publicado!...

Mas, lendo o seu estupendo artigo, de 17 de Junho, “Um homem modesto”, resolvi escrever-lhe, e para matar saudades, escolhi as páginas do “Noticias de Ourém” para tal.

Venho dizer-lhe o, que penso de “esse homem modesto”. E posso traçá-lo em duas linhas: é o ouriense cuja figura eu escolheria para erguer uma estátua na principal praça de Ourém que personificasse o indivíduo que deu à terra onde nasceu o melhor, de si próprio, do seu extraordinário espírito criador, da sua invulgar capacidade de trabalho, da sua eterna juventude, militando sempre como um verdadeiro Soldado Desconhecido, escondendo-se humildemente num anonimato dignificante.

Lembro-me bem da minha infância, em que o TONÁ aparecia aos olhos dos miúdos da minha idade como um ídolo, que, identificávamos com os heróis do cinema. Todos nós, garotos, tínhamos um sonho secreto, que por vezes manifestávamos em conversas sobre os nossos anseios futuros, ser como o TONÁ!

Ele era para nós o melhor jogador de basquete, o melhor bombeiro, o melhor músico, o melhor futebolista, o melhor decorador, o melhor electricista, o homem mais forte do mundo!

Recordo-me ainda de o TONÁ aparecer com a sua boina, ornada com uma enorme – águia dourada: valia para a garotada mais, muito mais, que o próprio Montgomery, que conhecíamos através das revistas do após guerra.

Só mais tarde comecei compreender todo o esforço desse “homem honesto”, o muito que ele deu de si próprio a Vila Nova de Ourém.

Creio mesmo, (não é o meu amigo desta opinião?), que nos tempos miseravelmente egoístas que vivemos, um homem como o TONÁ que acorre a todas as solicitações sem qualquer mira de recompensa, que pensa primeiro nos outros que em si próprio, que opera maravilhas de dinamismo e juventude nos seus cinquenta anos calmos, leais e honestos, um homem como o TONÁ – dizia eu – está deslocado deste mundo!

Considero-o um homem de excepção e, como tal, Ourém deve orgulhar-se dele!

Ah, que se a instrução neste país estivesse ao alcance de todos e não só dos que tem possibilidades económicas para tal! Que grande valor não teríamos no António Afonso!

Assim estiolam vocações, verdadeiras inteligências, em homens com a sua capacidade de trabalho, porque as portas dos Liceus e Faculdades lhe são pura e simplesmente, vedadas!

Senhor Galamba: não sei se a ideia de homenagear publicamente o António Afonso partiu de si. Mas, de qualquer modo, e sem desmerecer a sua oportunidade valorativa, ela devia ter sido posta em prática há muito mais tempo. Contudo, qualquer altura é boa para dizer ao TONAÁ: “Você é um homem que merece a gratidão de uma população inteira! E se a nossa sociedade não tivesse tão miserável e burguesa organização, você já teria, por exemplo, o seu nome inscrito numa rua da vila: ter-lhe-iam prestado uma homenagem que, por justa, seria mais um elemento a mostrar lhe que foi útil a sua passagem pela vida!”

Não poderei estar presente na festa de homenagem a António Afonso, mas quero pedir-lhe um favor, querido amigo: diga a esse homem ilustre que no dia 1 de Julho eu “estarei” a seu lado, para abraçá-lo e dizer-lhe sinceramente:

- “Orgulhe-se, TONÁ que bem merece esta homenagem!”

Receba, querido amigo, os cumprimentos e a admiração sincera do

Flores de Andrade
Ponta Delgada, Açores, 20/Junho/1962.

R. de R.
Pedimos licença para esclarecer uma passagem do artigo do nosso querido amigo Flores de Andrade, informando que a Comissão promotora desta homenagem é constituída pelos srs. Aguinaldo de Oliveira Santos, Rev.º Pároco Henrique Fernandes, Dr. Amândio Rodrigues, José de Sousa Simões, Alfredo de Sousa Simões e José Galamba.

No “Noticias de Ourém” a 01/07/1962

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