2005/09/22

Carta dirigida a um HOMEM

Meu caro Toná:

Embora quase da tua idade, pois brincámos juntos na nossa saudosa e distante meninice, não tive a ventura de ter acompanhado de perto a evolução da tua mentalidade e o desabrochar da tua fecunda e nata habilidade.

Nasceste pobre de bens materiais, mas, em compensação, Deus deu-te a enorme riqueza do teu carácter íntegro e impoluto.

Bem novo ficaste sem pai, ficando, por assim dizer, entregue somente – a ti próprio e ao negregado destino que bem cedo te marcou com o ferrete da desgraça!

Bem sei que ficaste com a tua saudosa e boa mãe mas, coitada, ela não podia sozinha, cuidar de ti e da numerosa prole que teu saudoso pai havia construído.

Outro que não fosses tu, teria soçobrado ao peso de tamanha desventura!

Sem recursos materiais, sem bagagem de instrução, pobre Toná, encontraste-te neste Mundo mais pobre que Pedro Cem!

De repente, ergueste-te como um colosso e caminhas para a luta de fronte erguida e peito descoberto!

O que foi esta luta de gigante só tu o saberás dizer.

Lentamente, vais avançando sempre – como mais tarde avançavas nos campos de futebol -dando generosamente, nessa luta, o teu próprio sangue!

Sem nunca atropelares ninguém, foste avançando sempre – como avançavas heroicamente quando a sirene tocava e havia vidas em perigo! Avançavas na vida como só sabem avançar abnegados Bombeiros em luta com as chamas!

Durante longos e pesados anos, vivemos longe um do outro; tu aqui na nossa amada terra, gozando as belezas incomparáveis do torrão onde nascemos; eu, pobre de mim, lá no sul, lixado nessa lendária cidade de "mármore o granito", sofrendo os revezes da vida, suportando estoicamente um ambiente morno e conspurcado.

Tu, Toná, vivendo uma vida sã, num ambiente fresco e sadio, respirando o ar puro, exalado dos imensos pinheirais que circundam a nossa terra; eu, vivendo uma vida impura, respirando, amargamente, o ar viciado dessa enorme babilónia onde as almas se corrompem e os corações se destroem!

Tu, amigo, sempre no convívio dos teus amigos conterrâneos que hoje te honram com uma homenagem que bem mereces. Eu, lá longe, muito distante de ti e dos meus companheiros de infância, arrastando a minha cruz que, com grande sacrifício vou subindo o Gólgota da vida! Tu, Toná, criando sempre reservas de energias e vigor num ambiente sem mácula; eu, perdendo pouco a pouco as minhas forças no ambiente de miséria o podridão. Tu, vivendo uma vida feliz junto doe teus familiares e amigos, lutando embora para mereceres o amargo pão dos pobres, mas sempre compensado como reconhecimento de quem muito te quer e admira. Eu, lutando também para merecer o pão que já me não deve faltar, mas sem ter à minha volta as dedicações que tu, merecidamente, soubeste granjear. E sabes porquê?

É que a vida nas grandes cidades é bem diferente da das terras pequeninas.

Aqui todos se conhecem una aos outros; todos se ajudam mutuamente; lá em baixo, na grande cidade das luzes apagadas… somos eternos desconhecidos uns dos outros e nunca nos ajudamos mutuamente.

Aqui, se temos fome, aparece sempre quem a suavize; lá na cidade se a fome nos ataca, logo desaparecem os que sempre nos apareciam.

Tu, Toná, que ainda jogas o futebol, o basquete e não sei que mais; tu que ainda és bombeiro e dos melhores; tu que fazes ainda trinta por uma linha, parecendo que os anos passam por ti sem deixar mancha, conservas uma eterna juventude; eu pobre de mim, que há muitos anos não dou pontapés na bola – embora os dê no gramática como agora estou dando – há muito dificilmente me arrasto, sofrendo de tudo e mais alguma coisa, tornei-me um velho em plena primavera da vida!

E qual o segredo da tua eterna juventude? O bom ambiente em que sempre tens vivido!

E qual o segredo do meu prematuro envelhecimento? O mau ambiente em que sempre tenho vegetado!

Esta merecida homenagem que os teus amigos te dedicam é o reconhecimento da vida honesta, laboriosa e cristã que desde muito novo abraçaste e nunca mais abandonaste.

Todos aqui na nossa terra te estimam e apreciam as tuas reais virtudes.

Posso até afirmar, sem receio de desmentido, que nunca tiveste um, inimigo sequer!

Lá longe, onde eu tenho a minha vida de trabalho, chegam-me a todo o momento, os ecos de todo o bem que praticas a favor dos que ainda são mais pobres do que tu! E é por isso que eu aqui estou para te render as minhas homenagens sinceras de bom e convicto cristão; eu, que, como sabes, nunca ou quase nunca, apareço a festas que pretendem mascará-las com a Verdade, mas que são no fundo uma flagrante mentira!

A tua festa é sincera e pura e chegou, alegremente, junto de todos, até mesmo dos deserdados da sorte e da fortuna, dos que sempre tens protegido e acarinhado!

Aqui estou na companhia de minha mulher – e não está presente meu filho porque – está longe na sua vida do mar, lutando como tu e como eu – para te testemunharmos a nossa grande admiração por – ti e pela obra grandiosa e bela que criaste na nossa querida terra!

A nossa terra e também a dos nossos saudosos pais que se – fossem vivos ainda se sentiriam felizes e orgulhosos! Orgulhosos de ti, Toná, por verem tantas dedicações e amizades à tua volta! Orgulhosos de mim por verem como exprimo os meus sentimentos por ti e também e também porque voltou de novo para a posse “dos Ovelheiros” os pedaços de terra negra, mas ubérrima, que eles tanta vez regaram com o suor dos seus rostos!

Enquanto houver sobre a face da terra, corações bem formados corno o teu, Toná, o Mundo, embora envolvido nas mais tremendas paixões de egoísmo louco, há sempre cantar hinos de amor e carinho.

Praza à Providencia, Toná, que a tua preciosa saúde se mantenha durante largos anos na terra abençoada e querida que todos nós amamos!

E que no teu pobre, mas feliz lar, nunca faltem os teus braços abençoados, para que teus filhos nunca sintam o amargor que tu sentiste!

Vila Nova de Ourém está em festa; toda ela se move, se agita e se agiganta, reconhecida e agradecida por quantos concorreram para dar beleza – movimento a esta bem merecida homenagem na pessoa de um seu filho, que tanto a tem honrado!

E eu que sempre tenho terçado armas em defesa dos simples, meus irmãos gémeos no nascimento e no sofrimento, aqui estou mais uma vez terçando armas pelo Toná!

Aqui me tens de novo ao pé de ti, meu Toná da minha infância, não só para recordarmos tempos que não voltam mais, mas, também, para erguermos bem alto o nome da nossa amada terra que tão pouco cuidada tem sido!

Aqui estou de novo – pobre caminheiro a carpir saudades – na terra onde nascemos e donde, talvez, nunca deveria ter saído, porque os bens materiais com que enriqueci o meu mais que modesto património, ficam muito aquém daqueles com que tu, Toná, enriqueceste a tua saúde e a tua eterna juventude.

Aparece lá por cima, pelo Vale, onde tantas vezes brincámos em criança! Aparece por lá com os teus conselhos e as tuas magníficas lições de civismo e amor à nossa terra e eu te prometo, não igualar-te, porque isso não séria possível, mas, pelo menos, procurar imitar-te e procurar aprender contigo tantas coisas que eu não sei e que tu sabes de cor e salteado, não no campo do desporto; na sagrada e heróica missão de bombeiro, ou na sublime arte da música, qualidades estas para as quais nunca tive vocação nem saúde mas no campo social e humano colocando acima de tudo o teu enorme carinho pelas crianças e o teu grande amor pelos infelizes que sofrem!

Neste aspecto, sim, poderei aprender contigo e procurarei imitar-te!

Quero acabar esta carta, servindo-me das palavras do nosso, conterrâneo Flores de Andrade: “ é o ouriense que eu escolheria para erguer uma estátua na principal praça de Ourém, que personificasse o indivíduo que deu à terra onde nasceu o melhor de si próprio, o seu extraordinário espírito criador, da sua invulgar capacidade de trabalho, da sua eterna juventude, militando sempre como um verdadeiro Soldado Desconhecido, escondendo-se humildemente num anonimato dignificante".

Um grande e forte abraço do teu sempre amigo e companheiro de infância.

Alberto António dos Santos

No “Noticias de Ourém” a 29/07/1962 e 05/08/1962.

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