2005/09/25

Faz agora cem anos

Foi assim:

Encarrapitada no coruto de elevado monte, à sombra dos castelos, Ourém, a filha da visigoda Abdegas, senhora de forais e pergaminhos, terra de fidalgos e de padres, era a cabeça dum rico, vasto, nobre e antiquíssimo concelho.

Cá em baixo, mesmo aos seus pés, virada ao norte, rastejava a Aldeia da Cruz – duas fileiras de casas muito brancas ao longo duma estrada, entre pinheirais e campos ubérrimos de cultura agrícola.

Aldeia da Cruz, ao lado de Ourém, não era nada – nem como povo, nem como prestígio, nem como importância histórica. Mas enquanto a vida, lá em cima, era espinhosa, porque os meios de subsistência tinham de vir de fora e os caminhos eram longos e difíceis, cá em baixo, não. Vivia-se melhor. Havia água. Os terrenos eram óptimos para o amanho. A situação excelente. As vias de comunicação abundantes e fáceis.

Não admira, portanto, que os homens, pouco a pouco, viessem estabelecer-se, de preferência, na modesta aldeia ribeirinha, à medida que os já pouco apertados laços que os prendiam à vila se iam quebrando. No princípio do século XIX já nem os magistrados viviam lá. E tão grande se foi tornando o desnível de possibilidades entre uma e outra povoação, que muitos dos próprios membros da Colegiada, paladinos sempre entusiastas dos altos privilégios de Ourém, principiaram a vir também, com os funcionários, residir no vale.

Num documento de 1825 se chama a Aldeia da Cruz “terra muito bem situada, onde há muitos anos residem as autoridades civis”; e se frisa que “o local da terra, continuado e bem estabelecido o negócio, chama novos habitantes, que não só reedificam casas arruinadas, mas fazem novas.”

Quanto à vila, essa, cada vez mais abandonada, “por não poder prestar comodidades alguma aos seus habitantes, e menos aliciar os de fora”, estava condenada a desaparecer: “Ela, por si, sem indústria humana ou caso fortuito, há-de necessariamente findar, e já há muito teria acontecido se os membros da Colegiada não fossem obrigados a rigoroso coro.”

A vida ia passando toda cá para baixo. Aqui moravam autoridades, professores e demais empregados. Aqui ficava, às vezes, a mesma tropa, que devia, por itinerário, aquartelar-se na vila. Aqui se realizavam as melhores festas religiosas da comarca. Aqui se resolviam já os negócios públicos da vida concelhia.

Aldeia da Cruz era, de facto, a cabeça do concelho. Já não merecia, por isso, que lhe chamassem aldeia. Dizia-o e sentia-o toda a gente. E veio a reconhecê-lo, oficialmente, a rainha D. Maria II, elevando-a à categoria de vila, com o nome de Vila Nova de Ourém, que ainda usa.

Foi em 25 de Setembro de 1841. Faz agora, precisamente, cem anos.

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Há que fixar a data. O dia 25 de Setembro, que aí vem, não é um dia vulgar, morto, sem alma, como os outros. Para nós é mais. E vergonha seria deixá-lo passar despercebido, sem um olhar ao menos lançado atrás, aos fastos e grandezas desta terra, ou um acto de recolhida gratidão para todos aqueles que, tempos fora, nossos avós, ergueram as casas onde moramos hoje.

Vergonha seria, digo, que não tivéssemos, nesse dia, onde quer que nos encontremos, um pensamento diferente das preocupações habituais – unidos todos, por alguns instantes, na recordação das mesmas glórias. Bem tristes conclusões se poderiam tirar daí – porque, na verdade, as festas de família só não as lembra quem de todo perdeu a consciência do que deve aos seus ou de todo se deixou escravizar pelo quotidiano.

Faz cem anos que Vila Nova de Ourém existe. Depois de tantos centenários, depois dos próprios centenários da Pátria, que passaram pelas almas em febre e exaltação, e foram para todos lição magnífica de civismo, já não podemos ficar alheios ao nosso. Temos de o lembrar.

Neste propósito, alinhavo, posto que a correr, estas palavras. Não venho pedir festas. Não quero exposições. Não penso em luxos. Nem a falta de tempo, nem a hora de guerra que vivemos, permitem o brilho de grandes manifestações externas.

É outra a minha ideia.

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Já uma vez, quando se falava entre nós na reforma toponímica da Vila, que depois se realizou de facto, embora em grande parte com infelicidade, chamei a atenção dos ourienses para uma enorme dívida que temos a saldar. Há por aí ruas com nomes deslocados em abundância. Nomes que não nos dizem nada. Pessoas a quem a vida do concelho não ficou a dever absolutamente nada. Ora à Rainha D. Maria II, devemos nós a criação da Vila. Não é justo, portanto, que lhe consagremos uma praça, ou rua, ou avenida, ou largo, – nós, que temos sido tão prontos em homenagear aqueles até que nem souberam talvez que Ourém vinha no mapa?

Na reforma toponímica do ano passado, não se quis cuidar a sério desta homenagem. Por isso volto à ideia. É agora ocasião de repararmos essa imperdoável falta.

Não devemos, no entanto, ficar aqui. Além desta homenagem, bem poderia a Câmara determinar que o dia 25 de Setembro se tornasse o dia do feriado municipal. Até aqui, tem sido o 1.º de Maio. Mas porquê? Que representa esse dia para nós? Ainda neste ponto, o vício continua a ser o mesmo. Para a nossa qualidade de ourienses, tanto como o nome de muitas ruas, semelhante feriado é inteiramente vazio de sentido. Nem sequer é data nacional. Importaram-na os políticos não sei donde e é memória abominável duma qualquer revolução operária, das muitas com que as internacionais mancharam de sangue os povos. Abandonemo-la, pois! Com ser um acto de justiça e coerência, é, simultaneamente, um acto de higiene.

Em substituição, aí teríamos o dia 25 de Setembro. É uma data nossa Fundamental na história do concelho. E seria, de resto, o melhor, mais seguro, mais bem recebido modo de perpetuar, em espírito de regozijo e de festa, uma comemoração, como esta, que se impõe. O dia 25 de Setembro nunca mais nos passaria despercebido, com certeza.

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Mudando assim o feriado municipal de Maio para Setembro e dando o nome da Rainha a uma das ruas, praças ou avenidas da sede do concelho, já se faria muito, mas não tudo.

É preciso, antes de mais, que se promova oficialmente uma sessão solene, no próprio dia 25 ou, se já não houver tempo, como creio, noutro qualquer.

A sessão solene é o mínimo do brilho externo indispensável. Sem ela, tudo pareceria morto, ou pelo menos, sem entusiasmo. E importa que assim não seja. Que tomemos este centenário não como coisa que vai e vem, sem nos afectar, mas como coisa presente e viva.

Falaríamos aí da terra em que nascemos, dos factos e dos homens que a tornaram grande. Falaríamos dos nossos problemas de hoje, das nossas preocupações actuais, das nossas possibilidades. E, sobretudo, aproveitaríamos a ocasião para focar toda a importância económica e moral do ruralismo, da vida caseira e laboriosa dos nossos pais, presos à terra uma vida inteira.

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Eis como poderíamos comemorar o centenário de Vila Nova de Ourém.

São ideias simples que trago, fáceis de pôr em prática. Não sobrecarregam as finanças concelhias, nem implicam dificuldades de maior. É só questão de boa vontade.

E boa vontade espero eu da Câmara Municipal – para quem apelo, na certeza de que não é debalde.

António Rodrigues

No “Noticias de Ourém” a 14/09/1941.

2 comentários:

Anónimo disse...

enquanto no castelo, à custa deste artigo, se esgrimam argumentos pro e contra os comunistas, (será que o proximo comentário vai dizer que comem criancinhas ao almoço??), queria agradecer a existência deste lugar de memória!!! E perguntar o que é feito desses jornalistas de outrora que nos impressionam ainda hoje com a qualidade dos artigos e o sentimento que lhe imprimem?!
OBRIGADA pela memória!

Sérgio Ribeiro disse...

Este "jornalista" julgo que era o hoje Bispo de Madarsuma (ou coisa parecida...) António Rodrigues figura proeminente na Igreja portuguesa, com uma grande influência, filho do sr. Vicente Rodrigues e irmão do sr. Fernando Rodrigues.
Tem uma perspectiva de que discordo quanto ao 1º de maio e à toponímia, mostrando uma tendência anti-operária e anti-republicana mas denota um nível intelectual e uma elegância de escrita que apraz registar.
Obrigado, NA