2005/07/03

TALENTO E ESPÍRITO UTILITÁRIO – NÃO SÃO A MESMA COISA

Vila Nova de Ourém, 19 de Junho 1960.

Por Lita Scarlatti
Se repararmos bem, por mais diverso que seja o ramo da Arte ou da Ciência em que os talentos se afirmem, a ligá-los, entre si, existirão sempre determinamos traços – como se nascessem no mesmo lar, e fossem empurrados, para a vida, pelo mesmo impulso orientador.
Sempre uma juventude mal afortunada, a mesma negra luta pelo pão de cada dia, igual embate duma hipersensibilidade que se desfibra contra a dureza da alma alheia. Sempre um sulco de incompreensão, de ingratidão, de injustiça e de inveja, a assinalar a trajectória dos seus passos neste mundo.
Ou será que, na forja do Destino, os caracteres têm de ser caldeados para apuramento dos metais nobres e, estes, ao rubro dos maiores sofrimentos, se temperarem e polirem, de modo a que o Tempo os não enferruje?
Tanto assim é, que os grandes homens que nasceram ricos, para merecerem da imortalidade a graça daquele brilho imperecível, como Tolstoi, sentem a necessidade de envergar a blusa do moujik – a veste da pobreza – e de consumir-se na ânsia do sacrifício depurador.
Nem todos os ourienses conhecerão a história de Afonso Gaio, mas talvez nem valesse a pena contá-la, bastando possivelmente citar os nomes dos seus iguais em talento e má fortuna. Em todo o caso, a título de curiosidade, vamos dá-la a traços largos.
Afonso Gaio, nascido em 25 de Outubro de 1871, em Ourém, e aí baptizado a 20 de Novembro do mesmo ano, era filho do Dr. Joaquim Gomes Vieira Gaio, aquele jurisconsulto que, no reinado de D. Maria II, foi simultaneamente tenente-coronel da Guarda de Segurança, administrador do concelho e presidente da Câmara de Ourém, e administrador da Casa de Bragança.
Mal vai, porém, ao homem, cujo talento não adquire projecção para além dos estreitos limites da terra onde nasceu ou viveu! Acontece-lhe, precisamente, o que se deu com o pai de Afonso Gaio. Foi o “cavalheiro a quem o concelho deve muitos bons serviços, como administrador de concelho e presidente a Câmara”, citado por Neves Eliseu no seu “Esboço Histórico do Concelho de Vila Nova de Ourém".
Não obstante, quando alguém quer saber quem foi realmente neste mundo pai de Afonso Gaio e, no rasto do talento do filho ilustre, procura a sombra do seu progenitor, as Enciclopédias, os Dicionários Biográficos e os Arquivos Históricos permanecem mudos. As buscas têm de circunscrever-se a um local por vezes mais pequeno que um cemitério.
Acontece assim apenas porque talento e espírito utilitário não são a mesma coisa.
Aos 18 de Setembro de 1873, portanto com menos de dois anos de idade, Afonso Gaio ficava órfão de pai, e em vez de frequentar o, Colégio Militar – a escola para meninos ricos, ou remediados, filhos de oficiais – aos 9 anos, por orfandade e pobreza (conforme o atestam dois documentos apensos ao respectivo processo) era admitido na Casa Pia de Lisboa.
Precederam-no nessa Casa, os dois mais desgraçados títulos que a juventude pode ter – a orfandade e a pobreza – mas isso, ainda assim, é quanto basta para a Casa Pia de Lisboa se orgulhar de contá-lo entre os seus mais ilustres filhos adoptivos.
Aos 13 anos, apesar dos excepcionais dotes de inteligência, por falta de apoio, viu dado por findo o internamento e os estudos, e saiu para o aprendizado de caixeiro, na loja de fanqueiro de António Paiva, na Calçada da Pampulha, n.º 89.
(Clique na foto para ampliar)
Dali, transferiu-se para o estabelecimento de Manuel Pereira de Figueiredo, na Rua Direita de Alcântara, n.º 89 e, por fim, foi aprendiz de luveiro na fábrica dum francês. Adolphe Malbouisson, na Rua Garrett, 54.

Perante o retrato que ilustra a biografia de Afonso Gaio, traçada na “Enciclopédia Luso-Brasileira”, comentando a revolta do caixeiro que insistia por estudar e “se negava a trabalhar nas lojas por considerar a tarefa imprópria para um filho de bacharel”, o Sr. Dr. Oliveira Martins (a quem devemos a permissão de folhear comovidamente o seu processo) murmurou apenas:

- Corno é que um homem destes podia resignar-se a ser caixeiro ou aprendiz de luveiro?! …

Depois, teve um pequeno emprego nas Obras Públicas de Beja. Seguidamente, para poder estudar, assentou praça, voluntário, em Caçadores 5.

Só Deus poderá avaliar as privações suportadas ate chegar ao Curso Superior de Letras, sem a mínima ajuda de ninguém.

Desistiu da vida militar e, na mira de trabalhar de noite, e estudar de dia, ingressou no jornalismo onde o seu nome brilhou entre os melhores da época, chegando a colaborar em “La Nacion”, um dos dois maiores jornais de Argentina.

Com a morte da mãe viu terminado o sonho de concluir o curso. Em a “Coroa de Espinhos”, um livro de sonetos escritos aos 20 anos, nestes versos dedicado à sua memória, Afonso Gaio lamenta-se:

“Como um conto de fadas, muito antigo,
Em pergaminho lívido gravado,
Eu tenho escrita a vida do passado
Tão branca como a cinza de um jazigo.

Vão-se os olhos chorando, ao ver que sigo
Todas essas saudades; e, mau grado.
Meu, quando vulto ao tempo de namorado,
Matar dor nessa hora está comigo!

Parte da minha vida se desterra.
- Para onde? Nem eu sei! Porque meus passos
Nem sabem da alma que meu corpo encerra…

Desde que alguém fugiu levando os braços
Onde eu, crente, dormia cá na terra,
Como as estrelas dormem nos espaços!”


Quando depois de 70 anos de atribulações, de torturas e de incompreensão, Afonso Gaio deixou de sofrer, só por um motivo não pôde repetir-se o testamento de Voltaire: - “Devo tudo, não tenho nada; o resto é para os pobres”

Dum orgulho que se traduzia em rectidão de carácter e numa extrema honradez, habituado a viver com pouquíssimo, não devia nada a ninguém. Nem favores. Também, pelo menos aos pobres de intelecto, não deixava nada. Mas aos ricos de espírito legou uma obra que se concretiza em dois romances; um livro de contos, todos modelares; crónicas, conferências, cerca duma vintena de peças (entre as quais, seguramente dez tão boas como as consideradas boas no nosso Teatro); e cinco volumes de poesia. O último, inédito, “Os Escravos” em dez cantos num total de mais de mil e oitocentos versos agrupados em tercetos doze sílabas, não se envergonha de emparceirar com a “Legende des siécles”, de Victor Hugo.

As peças de Afonso Gaio, todas elas, ou decorrem em Lisboa onde ganhou dura e honradamente o pão, ou em Ourém, sua terra, a qual legou um nome ilustre, seu único tesouro acumulado através de inenarráveis sacrifícios.

Acreditamos que, entre os ourienses, não exista ninguém capaz de fazer esta pergunta absurda:
- Mas, objectivamente, que fez Afonso Gato pela sua terra?
Que os ourienses me perdoem a ofensa que a interrogação envolve. Ela foi posta unicamente em hipótese e, sobretudo, para nos permitir estabelecer o paralelo que une, entre si, os homens geniais.

Com efeito, talento e espírito utilitário, não são a mesma coisa.

Qualquer criatura sem mérito nem virtude, desde que o acaso lhe tenha dado bens de fortuna (sabe Deus quantas vezes mal adquiridos) pode afixar o seu nome num marco fontenário ou num lavadouro público.

Mas, a marca do talento, essa, reside precisamente no cunho dm universalidade e, assim, não pode confinar-se nos pequeninos interesses de natureza utilitária duma aldeia, duma vila, duma cidade ou até dum país.

Que fez Shakespeare pela sua terra natal, Stratford, na Inglaterra? Objectivamente, nada, porque não cabia lá o génio do maior escritor trágico do mundo.

Que fez Beethoven por Bonn, na Alemanha? Nada podia fazer, porque o génio do maior músico de todos os tempos, tinha de ultrapassar o âmbito da sua terra para encher o mundo.

Que fez Pasteur pela sua terra, Dôle, na França? Tudo e nada. A universalidade das suas descobertas salvou, e todos os dias salva a vida dos homens, sem limite de fronteiras.

O génio de Camões poderia ter-se manifestado em qualquer paralelo. Somente, cabe aos portugueses a honra de lhe chamarem irmão.

Santo António, o grande santo português é conhecido, por Santo António de Pádua. De Pádua, na Itália, pois a Fé como o talento, não conhecem fronteiras e, quanto maiores, mais acentuada a sua universalidade.

Para exemplo, apontamos homens verdadeiramente geniais. Mas, dentro de quaisquer limites, talento e espírito utilitário não são a mesma coisa.

E afinal, que fazem pela sua terra, os homens como Afonso Gaio? Nada, e tudo. Passam fome e privações, torturam-se, de alma a sangrar deixam se ferir pela ingratidão, pela incompreensão, pela injustiça e pela inveja dos medíocres, consomem-se num Ideal que se traduz na realização duma obra que será para todos mas, grande ou grandiosa, cabe intacta no nome ilustre do qual, legitimamente, só poderá orgulhar-se a pequena terra onde nasceram.

Lita Scarlatti

No “Noticias de Ourém” a 19/06/1960

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